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terça-feira, 8 de setembro de 2015

Adão, a genética e a teologia...






Tradução do texto "How Does a BioLogos Model Need to Address the Theological Issues Associated with an Adam Who Was Not the Sole Genetic Progenitor of Humankind?" [Como um modelo BioLogos deve abordar as questões teológicas associadas a um Adão que não é o único progenitor genético da humanidade?] de Denis Alexander. A presente tradução tem a finalidade primaria de disponibilizar ao público de língua portuguesa o conhecimento de dois modelos acerca do relacionamento dos saberes científicos e teológicos ligados à origem do homem e fomentar discussões frutíferas e cordiais. Boa leitura!

A pergunta no título deste ensaio levanta uma questão inicial: como deveríamos proceder na tarefa de relacionar verdades teológicas e teorias científicas atuais? Verdades teológicas reveladas na Escritura são infalíveis e eternas, válidas para toda humanidade em todos os tempos, apesar de interpretações humanas das Escrituras não serem infalíveis e poderem mudar com o tempo sobre questões que não são centrais ao Evangelho.

Teorias científicas, em contraste, representam a atual "melhor explicação"  proposta pela comunidade científica para certos fenômenos,  baseada em critérios tais como a interpretação das observações, resultados experimentais, elegância matemática e a habilidade das teorias em gerar programas de pesquisa frutíferos. Teorias científicas não são infalíveis e certamente mudarão. contundo, a mudança não necessariamente implica substituição. Usualmente teorias científicas não são substituídas, mas modificadas. A este respeito, elas são frequentemente comparadas a mapas que incorporam muitos tipos diferentes de dados: os mapas são revistos, quando necessário, para incluir novos dados e são aperfeiçoados no processo.

Algumas vezes, os cientistas usam a palavra "modelo" para propor uma grande ideia, ou um grupo de ideias que, juntas, ajudam a explicar certos dados científicos. Para desespero dos filósofos da ciência, o uso de tais palavras no discurso científico pode ser algumas vezes impreciso. A palavra "modelo" é um caso, o seu uso às vezes coincidindo com o do termo "teoria". Contudo, usualmente "modelo" tem um significado mais focalizado: o modo no qual certos grupos de dados podem se tornar coerentes por serem explicados em termos de uma representação física, matemática ou mesmo metafórica.

No começo dos anos 1950 existiam vários modelos rivais descrevendo a estrutura do DNA, a molécula que codifica os genes. Linus Pauling propôs um modelo em tripla hélice. Mas Jim Watson e Francis Crick tiveram a grande vantagem de obter os resultados do padrão de difração de raios-X de DNA antes da publicação dos mesmos por outra cientista chamada Rosalind Franklin. A dupla hélice era de fato o único modelo que incorporaria todos os dados de modo satisfatório, como Watson e Crick publicaram em seu famoso artigo de uma página, na Nature em 1953. Desde este tempo todos sabem que o DNA é uma dupla hélice, não uma tripla hélice ou outra estrutura. Na ciência, modelos são muito poderosos.

Nem todos os modelos científicos triunfam de modo tão decisivo. Por muitos anos em meu próprio campo da imunologia houve discussões sem fim sobre como a classe de células brancas do sangue conhecidas como células "T" são instruídas dentro do corpo para atacar invasores estranhos, mas não (usualmente) para atacar "a si próprio", ou seja, nossos próprios tecidos. Aquelas discussões estão virtualmente encerradas hoje porque o modelo geral que tem surgido explica a maior parte dos dados inteiramente bem, trazendo, para o enredo, resultados de pesquisa de muitos laboratórios diferentes. Mas o modelo bem-sucedido que prevalece é muito mais "desarrumado" que o excepcionalmente elegante modelo de dupla hélice para o DNA. Os modelos mais bem-sucedidos não são necessariamente os mais simples. Os melhores modelos são aqueles que explicam os dados adequadamente.

Algumas vezes modelos rivais coexistem por longos períodos de tempo na literatura científica porque eles explicam os dados igualmente bem. Neste caso é dito que um modelo em particular é "subdeterminado pelos dados". Todos concordam com os dados que existem - o desacordo é sobre como encaixar os dados juntos para criar o melhor modelo. Eventualmente emergem novos dados que contam a favor de um modelo em vez de outro, ou que decisivamente refutam uma alternativa.

Quando nós vamos à questão de que modelo Biologos pode melhor abordar o relacionamento entre o Adão de Gênesis e o relato antropológico e genético da humanidade que não tem um simples casal como fonte de sua herança genética, então nós necessitamos ter em mente estas várias maneiras nas quais o termo "modelo" é aplicado no discurso científico. Nós começaremos com uma questão esclarecedora inicial: "O modelo construído é apropriado para relacionar verdades científicas e teológicas?" e, tendo dado uma resposta afirmativa a esta questão, nós iremos então considerar que modelo pode ser o mais apropriado para relacionar os relatos teológico e científico.

Está-se construindo o modelo apropriado?

Há pessoas que sustentam que as verdades apresentadas pelos primeiros capítulos de Gênesis são verdades teológicas válidas independentemente de qualquer história antropológica particular. O propósito do texto de Gênesis é revelar que a fonte da criação é o agir do único Deus verdadeiro, que fez exclusivamente a humanidade a Sua imagem. A narrativa da desobediência de Gênesis 3 é a "história de todo homem". Todos nós pecamos e carecemos da glória de Deus, e esta passagem apresenta tal verdade no estilo de vívida narrativa referente a teologia em vez de história.

Aqueles que adotam esta posição podem também apontar para os perigos de uma visão "concordista" de interpretação bíblica. O termo "concordismo" (em seu sentido tradicional) geralmente refere-se à tentativa de interpretar as escrituras inapropriadamente, usando as suposições ou linguagem da ciência. Calvino, que combateu notavelmente tais tendências em seu grande comentário ao Gênesis, observa no capítulo 1: "Nada é aqui tratado, exceto a forma visível do mundo. Relativamente àquele que quiser aprender astronomia e outras artes obscuras, deixe-o ir a outro lugar". Mas o termo "concordismo" é também, algumas vezes, estendido para incluir virtualmente qualquer tentativa de relacionar verdades bíblicas e científicas. Tal crítica parece ser um passo demasiado longo, pois neste caso nossa teologia torna-se afastada demais do mundo, contrastando com a famosa analogia dos "dois livros", na qual ambos, o Livro da Palavra de Deus (a Bíblia) e o Livro da Obra de Deus (a ordem criada)  nos falam, em seus diferentes modos, sobre a mesma realidade. Esta poderosa analogia tem sido influente por muitos séculos no diálogo entre ciência e fé, e o desafio é ver como os dois "Livros" falam um com o outro, porque toda verdade é verdade de Deus.

Construir modelos para relacionar textos bíblicos e ciência requer não interpretações concordistas do texto (no sentido tradicional da palavra "concordismo"). Às disciplinas de ambas, ciência e teologia, deve ser concedida sua própria integridade. Os textos de Gênesis devem poder falar dentro de seus próprios contextos e formas de pensamento, os quais estão claramente muito distantes daqueles da ciência moderna. Todos podemos concordar que os capítulos iniciais de Gênesis existem para comunicar teologia, não ciência. A tarefa dos modelos é, então, explorar como as verdades teológicas de Gênesis podem se relacionar com nossa atual compreensão científica das origens do homem.

Os modelos que propomos não são o mesmo que os "dados". Por um lado nós temos os dados teológicos fornecidos pelo Gênesis e o resto das Escrituras, verdadeiros para todas as pessoas ao longo do tempo. A incerteza surge aqui apenas da dúvida se nossas interpretações do texto são tão sólidas quanto podem ser. Por outro lado nós temos os atuais dados científicos que estão sempre abertos à revisão, expansão ou à melhor interpretação. Contudo, os dados suportam, de maneira esmagadora, certas verdades científicas, por exemplo que nós compartilhamos uma herança genética comum com os macacos. O papel dos modelos é tratar ambas verdades, teológica e científica, seriamente e ver como elas podem "falar" uma à outra, mas nós nunca devemos defender um modelo em particular como se estivéssemos nos referindo aos dados em si. Todo modelo representa uma construção humana que busca relacionar tipos diferentes de verdade; modelos não são achados dentro do texto das Escrituras - o máximo que podemos esperar deles é que sejam "consistentes com" os textos bíblicos relevantes. Nunca confundamos o modelo com as verdades que ele procura conectar entre si.

Na prática, todo leitor ocidental do texto de Gênesis, nascido e criado em uma cultura fortemente influenciada pela linguagem e formas de pensamento da ciência, dificilmente pode evitar a tendência quase instintiva de construir modelos ou imagens mentais do que eles poderiam ter visto se estivessem lá quanto "isto" [os eventos narrados]* aconteceu. Isto ocorre independentemente se alguém aborda o texto como um criacionista da Terra jovem, um criacionista da Terra velha ou um teísta evolutivo. Dado que todos nós tendemos a construir modelos de qualquer maneira, podemos também assegurar que o modelo que sustentamos tem sido completamente sujeito à crítica. Isto é importante não só para nossa própria integridade pessoal, mas também no contexto pastoral, no qual buscamos evitar dissonâncias cognitivas desnecessárias nas mentes daqueles sob nosso cuidado pastoral.

Modelos de relacionamento da teologia da criação com a antropologia

O último ancestral comum entre nós e os chimpanzés viveu a 5 ou 6 milhões de anos. Desde esse tempo nós e os macacos temos trilhado independentemente nossos próprios caminhos evolutivos. hoje nós temos religião, os chimpanzés não. Em algum estágio, a humanidade conheceu o único Deus verdadeiro das Escrituras. Como e quando isto ocorreu?

A emergência dos humanos anatomicamente modernos

Humanos anatomicamente modernos apareceram na África a cerca de 200000 anos. Os fósseis bem caracterizados mais antigos vieram da formação Kibish, no sul da Etiópia, e sua idade foi estimada em cerca de 190000 a 200000 anos de antiguidade[1]. Outros crânios fósseis bem estabelecidos de nossa espécie foram achados na vila de Herto, na Etiópia, e datam de 160000 anos atrás, como estabelecido pela datação por isótopos de argônio[2]. Em uma pequena onda de emigração, nossa espécie chegou ao oriente médio a cerca de 115000 anos atrás, como indicado por inequívocos esqueletos parciais de Homo sapies achados em Skhul e Qafzeh, em Israel. Mas uma emigração significativa para fora da África aparentemente não ocorreu até depois de 70000 anos atrás, com humanos modernos penetrando na Ásia e avançando para a Austrália a cerca de 50000 anos e voltando-se para a Europa (onde viveu o homem de Cro-Magnon) a cerca de 40000 anos. Por volta de 15000 anos atrás eles estavam entrando aos poucos na América do Norte através do Estreito de Bering[3].

O tamanho efetivo da população que emigrou da África tem sido estimado entre 60 e 1220 indivíduos[4], o que quer dizer que virtualmente todas as populações não africanas no mundo atual descendem desta minúscula população fundadora. Mesmo os micróbio que vivem no intestino humano "dizem" a mesma história, com sua variação genética refletindo as origens africanas de seus hospedeiros[5]. Mas diferentes grupos de humanos viveram na África por, no mínimo, 130000 anos antes da emigração, muitos destes isolados um do outro por muito tempo. Portanto se esperaria maior variação genética ente diferentes populações de africanos que entre diferentes populações de não africanos, o que se observa de fato.

Adão no texto de Gênesis

A primeira real menção de "Adão" na Bíblia está em Gênesis 1.26,27, onde o termo significa, inequivocamente, "humanidade". Estes versos são repetidos nas palavras de abertura da segunda Toledoth de Gênesis em 5.1,2: "Este é o registro da descendência de Adão: Quando Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez; homem e mulher os criou. Quando foram criados, ele os abençoou e os chamou Homem". Assim adão pode referir-se à humanidade e é somente adão que é feito à imagem de Deus.


Então, em Gênesis 2, entra um rei - o embaixador de Deus na Terra! Mas é um rei de pó: "Então o Senhor Deus formou [heb. yatsar] o adão do pó da adamah [pó da terra] e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente [heb. nepesh: fôlego, alma]" (Gn 2.7). A verdadeira natureza material da criação, incluindo o homem, é sublinhada pelo verso 9: depois de por o homem em "um jardim a leste, no Éden", "O Senhor Deus fez nascer então do solo [adamah] todo tipo de árvore".

Existem muitos pontos importantes resumidos nestes versículos. em primeiro lugar, existe uma palavra perfeita para "homem"  em hebraico: "ish", a qual é a mais usada no Antigo Testamento (1671 vezes). Assim, a escolha de "adão" aqui para significar "homem" aparenta ser uma ferramenta didática usada de modo deliberado para explicar ao leitor que "adão" não apenas vem da adamah, mas recebe a importante tarefa de Deus de cuidar da adamah - a Terra. Adão deve ser o guardião da Terra, comissionado por Deus.

Em segundo lugar, notemos o uso do artigo definido antes do termo "adão", de modo que a tradução correta em inglês é "o homem", e o artigo definido permanece no lugar ao longo do texto até Gn 4.25, quando Adão aparece sem artigo definido e "se deita com sua esposa novamente". Nomes pessoais em hebraico não trazem artigo definido. Assim, um ponto teológico particular é estabelecido: eis "o homem", um homem realmente particular e talvez o representante de todos os outros homens. Embora estejamos a compreender o uso do artigo definido, não há dúvida que isto é uma estratégia realmente deliberada neste bem composto texto com não menos que 20 menções ao "homem" em Gênesis 2 e 3.

Mas, ao mesmo tempo, existe alguma ambiguidade no uso da palavra "adão"; uma ambiguidade intencional talvez, a qual torna bastante difícil saber quando "Adão" é usado pela primeira vez como um nome pessoal[6]. Por exemplo, em alguns versos, em vez do artigo definido antes de "adão", há o que é chamada na língua hebraica "preposição inseparável", traduzida como "para" ou "por" em Gênesis 2.20, 3.17 e 3.21. Diferentes traduções aplicam suas diferentes interpretações próprias acerca de quando "adão" começa a ser usado como o nome pessoal "Adão" e essas diferentes interpretações dependem do contexto. Assim, é melhor não ser dogmático sobre o momento exato no texto quando "o adão", o homem representativo, transforma-se em "Adão" significando um nome pessoal.

O terceiro ponto importante ressaltado em Gn 2.7 é que "adão tornou-se um ser vivente" ou, como algumas traduções vertem "uma alma vivente". O uso da palavra "alma" tem levado alguns cristãos a pensar que este verso é uma descrição de uma alma imortal que é implantada no "adão" durante sua criação. Mas qualquer que seja o ensino das Escrituras sobre este ponto em outro local, é difícil sustentar tal ideia com base nesta passagem de Gênesis. A palavra hebraica usada aqui é nepesh, que pode significar, de acordo com o contexto, "vida", "força da vida", "alma", "respiração", o centro das emoções e desejos, uma criatura ou pessoa como um todo, o indivíduo, o corpo e até, em certos casos, um cadáver. Em Gênesis 1.20,21,24 e 2.19 exatamente a mesma frase em hebraico - nepesh vivente, traduzida como "criatura vivente" - é usada para animais como é aqui para "o adão". E percebemos também que quando adão tornou-se uma nepesh a ele não foi dado algo extra. Assim o texto está simplesmente indicando que a vida e o fôlego de adão dependiam de Deus, como ocorria com as criaturas viventes de Gênesis. Certamente não há espaço para compreender esta passagem particular como se referindo à adição a adão de uma alma imaterial e imortal.

Como podemos relacionar a compreensão antropológica com o profundo esboço teológico que os primeiros capítulos de Gênesis nos proveem com sua apresentação cuidadosamente matizada de "Adão"? Existem dois modelos principais que buscam responder esta questão, que chamaremos de modelo da "Releitura" e modelo Homo divinus, por razões que se tornarão claras em breve. Ambos os modelos aceitam as grandes verdades teológicas sobre a humanidade feita à imagem de Deus e sobre a alienação de Deus trazida pela desobediência dos humanos pecadores. Ambos os modelos aceitam o atual relato antropológico das origens humanas. Mas os modelos diferem marcadamente nos modos pelos quais eles relacionam estes dois conjuntos de dados[7]. Embora eu pessoalmente favoreça o segundo modelo, nosso propósito aqui será acessar os pontos fortes e fracos de cada modelo do modo mais objetivo possível.

O modelo da "Releitura"

O modelo da "Releitura" representa uma visão proto-histórica gradualista, significando que ele não é histórico no sentido usual deste termo, mas refere-se a eventos que ocorreram em lugares e momentos particulares. O modelos sugere que à medida que humanos anatomicamente modernos evoluíram na África a 200000 anos atrás, ou durante algum período de desenvolvimento linguístico e cultural desde então, houve um crescimento gradual de consciência da presença e chamado de Deus sobre suas vidas para que eles respondessem em obediência e adoração[8]. As mais antigas agitações espirituais dos seres humanos foram no contexto do monoteísmo e era natural, no princípio, para os seres humanos, se voltarem para o seu Criador, do mesmo modo que crianças hoje em dia aparentam ter prontidão para crer em Deus quase tão cedo quanto possam falar[9]. Neste modelo, os primeiros capítulos de Gênesis representam uma releitura deste episódio primitivo (ou série de episódios) na nossa história humana de uma forma que poderia ser entendida na cultura do oriente médio, na qual vivia o povo judeu naquele tempo. Portanto, o modelo apresenta a narrativa de Adão e Eva como um mito no sentido técnico do termo - uma história ou parábola com o propósito principal de ensinar verdades eternas - embora referindo-se a eventos putativos reais que ocorreram em um prolongado período de tempo durante o início da história da humanidade na África.

Alguns desejariam forçar este modelo ainda mais para sugerir que Adão e Eva da narrativa de Gênesis representam, de fato, os primeiros membros da nossa espécie na África de 200000 anos atrás. Esta sugestão, contudo, enfrenta um problema científico significativo. Tudo que sabemos sobre a emergência de novas espécies de mamíferos é que ela é um processo gradual que pode levar milhares de anos. Uma população  isolada do ponto de vista reprodutivo acumula gradualmente um conjunto único de variantes genéticas que, eventualmente, geram uma nova espécie, a qual seria uma população que não intercruza com outra população. Uma nova espécie não começa abruptamente e, certamente, não com um macho e uma fêmea, apenas.

Se sustentarmos o modelo de "releitura" como resumido acima, então a Queda[10] é interpretada como a rejeição consciente, por parte da humanidade, do conhecimento da presença e chamado de Deus para suas vidas, com o fim de escolherem seus próprios caminhos ao invés dos caminhos de Deus. A Queda, então, torna-se um longo processo histórico, ocorrendo em um período prolongado de tempo e levando à morte espiritual. A narrativa de Gênesis da Queda neste modelo torna-se uma re-leitura dramatizada deste antigo processo através do relato de Adão e Eva num contexto cultural do oriente próximo.

A favor do modelo "releitura" está o modo pelo qual a doutrina de Adão feito à imagem de Deus pode ser aplicada a uma comunidade específica de seres humanos anatomicamente modernos, cujos descendentes - todos os seres humanos desde aquele tempo - compartilham deste status privilegiado sob a visão de Deus. Do mesmo modo que esta primitiva comunidade humana putativa virou as costas para a luz espiritual que Deus tem graciosamente concedido, assim o pecado entrou no mundo pela primeira vez, e tem contaminado a humanidade desde então. Tal interpretação é possível pelo fato que a comunidade humana inicial na África teria tido não mais que algumas centenas de casais. Se o modelo da "releitura" é aplicado a esse estágio inicial da evolução humana, antes do tempo no qual diferentes populações humanas começaram a se espalhar através de diferentes áreas da África, então esses eventos putativos poderiam ter ocorrido com todos os humanos vivos naquele momento.

Um ponto teológico adicional consistente com o modelo de "releitura" é o ensino de Paulo em Romanos 2.14,15 de que os gentios têm as exigências da lei "escritas em seus corações" mesmo sem a revelação específica do Antigo Testamento. De modo semelhante, sugere-se, a humanidade inicial conheceu a Deus como Ele escreveu Sua lei em seus corações e foi a desobediência desta humanidade a esta luz divina que levou à alienação de Deus. Isto por sua vez deixou um vácuo espiritual que a humanidade tem sempre tentado preencher desde então com todo tipo diferente de religião, nenhuma das quais (fora a Cruz), trazendo reconciliação com Deus.

Contra o modelo "releitura" está o modo que ele retira a narrativa de qualquer contexto no oriente próximo, separando a narrativa de suas raízes judaicas. Se os primeiros capítulos de Gênesis são sobre o trato de Deus com o Seu povo primordial, que depois veio a ser chamado povo judeu, então a África não é a direção na qual devemos olhar. Depende muito de como exatamente a narrativa de Gênesis sobre Adão e Eva é interpretada; sobre quanto peso é colocado nas genealogias do Antigo Testamento que incorporam Adão como uma figura histórica (Gn 5.1; 1Cr 1) e na genealogia do novo Testamento que traça a ascendência de Cristo até Adão (Lc 3); e sobre passagens como Romanos 5 e 1Coríntios 15, que são mais facilmente interpretadas assumindo-se que Adão é entendido como um indivíduo histórico real. O segundo modelo busca tratar dessas preocupações.

O modelo Homo divinus[11]**

Como o modelo "releitura", este modelo também representa uma visão proto-histórica no sentido que ele está além da história como normalmente entendida, mas como o modelo "releitura", olha para eventos localizados na história que podem corresponder ao relato teológico fornecido pela narrativa de Gênesis. Mas, neste caso, o modelo aloca esses eventos dentro da cultura e geografia que o texto de Gênesis fornece. De acordo com esse modelo, Deus em sua graça escolheu um casal de agricultores neolíticos no oriente próximo, ou talvez uma comunidade de agricultores, com o fim de revelar a si próprio de um modo especial, chamando-os à comunhão com Ele - para que eles pudessem conhecê-lo como o único Deus pessoal. De agora em diante, haveria uma comunidade que se saberia chamada para um santo empreendimento: serem mordomos da criação de Deus e conhecerem Deus pessoalmente. Por esta razão este primeiro casal ou comunidade tem sido denominado Homo divinus, os humanos divinos; aqueles que conhecem ao Deus verdadeiro, o Adão e a Eva do relato de Gênesis[12]. Ser um humano anatomicamente moderno era necessário, mas não suficiente para ser espiritualmente vivo; como é o caso. Homo divinus foram os primeiros humanos vivos espiritualmente, em comunhão com Deus, provendo as raízes espirituais para a fé judaica. Certamente existia fé religiosa antes deste tempo, com pessoas buscando Deus ou deuses em diferentes partes do mundo e oferecendo suas próprias explicações para o significado de suas vidas, mas Homo divinus marcou o tempo no qual Deus escolheu revelar a si próprio e seus propósitos para a humanidade pela primeira vez.

O modelo Homo divinus também chama atenção para a natureza representativa de "o Adão", "o homem", como sugerido pelo uso do artigo definido no texto de Gênesis, como mencionado acima. "O homem" é, portanto, visto como o cabeça federal de todos os humanos vivos naquele tempo. Este foi o momento no qual Deus decidiu começar sua nova família espiritual na Terra, consistindo de todos aqueles que põem sua confiança em Deus pela fé, expressa em obediência à sua vontade. Adão e Eva, nesta visão, foram pessoas reais, vivendo em uma época histórica e localização geográfica particulares, escolhidos por Deus para serem representantes de sua nova humanidade na Terra, não em virtude de qualquer coisa que eles tenham feito, mas simplesmente pela graça de Deus. Quando Adão reconheceu Eva como "osso dos meus ossos e carne de minha carne", ele não estava apenas reconhecendo um companheiro Homo sapiens - havia muitos deles à volta - mas uma companheira de crença; uma como ele, que tinha sido chamada para compartilhar a verdadeira vida de Deus em obediência a seus mandamentos. A população mundial nos tempos o Neolítico é estimada em 1 a 10 milhões de pessoas, geneticamente semelhantes a Adão e Eva, mas neste modelo foi a estes dois agricultores dentre todos os milhões de coetâneos que Deus escolheu se revelar.

Assim como eu posso ir às ruas de Nova York hoje e, só de olhar as pessoas, não ter ideia de quais são vivas espiritualmente, apesar de todas elas pertencerem à espécie Homo sapiens, também, neste modelo, não havia como distinguir fisicamente Adão e Eva de seus contemporâneos. Este é um modelo sobre vida espiritual, bem como sobre mandamentos e responsabilidades revelados, não sobre genética.

Como este modelo se relaciona ao fato de Adão ter sido feito à imagem de Deus? Se tomarmos Gênesis 1 como um tipo de literatura de manifesto, que estabelece os fundamentos para se entender a criação, fornecendo, por sua vez, a estrutura para a compreensão do resto da Bíblia, então o ensino sobre a humanidade feita à imagem de Deus é uma verdade fundamental válida para todos os seres humanos em todos os tempos. Esta é uma verdade que certamente abrange a régia responsabilidade dada à humanidade em Gênesis 1 no sentido de sujeitar a Terra; a verdade também tem um aspecto relacional, refletindo a comunhão dos seres humanos com Deus, e as implicações relacionais do que significa ser feito à imagem de Deus são tratados em Gênesis 2, através do trabalho, casamento e cuidado com a Terra.

É claro, com nossa mentalidade ocidental gostaríamos de perguntar sobre o aspecto cronológico: quando, exatamente, os humanos foram feitos imagem de Deus? Mas o texto de Gênesis não está interessado em cronologia. Nem o modelo Homo divinus, como apresentado aqui, busca abordar este ponto em particular, mas simplesmente aceita o fato de toda humanidade, sem exceção, ser feita à imagem de Deus. Em vez disto, o modelo foca no evento de Gênesis 2.7, no qual Deus sopra nas narinas de Adão, de modo que este se torna uma nepesh, um ser vivente que pode responder ao chamado de Deus para sua vida. O modelo é sobre como Adão e Eva tornaram-se filhos responsáveis de Deus, o que envolve um relacionamento pessoal com o mesmo, obediência a seus comandos e o inicio da nova família de Deus na Terra, família esta formada de todos os que viriam a conhecer Deus pessoalmente. Paulo diz: "me ponho de joelhos perante o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, do qual toda a família nos céus e na terra toma o nome" (Ef 3.14,15). As famílias têm que começar de algum ponto e Deus escolheu começar a sua nova família na Terra com dois indivíduos bem comuns, salvos pela graça como nós, e sustentados pela "árvore da vida".

Neste modelo a Queda, então, é a desobediência de Adão e Eva à vontade revelada de Deus, trazendo morte espiritual em sua esteira e destruição do relacionamento entre Deus e os homens. Em uma extensão deste modelo, assim como Adão é o cabeça federal da humanidade e como ele caiu, caiu também a humanidade com ele. A liderança federal trabalha dos dois modos. Assim como uma bomba de hidrogênio explode violentamente, espalhando radiação ao redor do mundo, também o pecado entrou no mundo com a primeira desobediência deliberada aos mandamentos de Deus, espalhando a contaminação espiritual do pecado por todo mundo. E, como com o modelo "releitura", a morte física de animais e humanos é vista como ocorrendo através da história evolutiva. Ambos os modelos sugerem que é a morte espiritual a consequência do pecado. Gênesis 3 provê uma vigorosa descrição da alienação que a humanidade sofre como resultado do pecado, com uma barreira de fogo separando os humanos da Árvore da Vida (3.24). Mas, sob a nova aliança, o caminho de volta à árvore da Vida está aberto, através da obra expiatória de Cristo na cruz: "Felizes os que lavam as suas vestes, para que tenham direito à árvore da vida e possam entrar na cidade pelas portas" (Ap 22.14).

O modelo Homo divinus tem a vantagem de levar muito a sério a ideia bíblica de que Adão e Eva foram figuras históricas, como indicado pelos textos citados acima. Também vê a Queda como um evento histórico envolvendo a desobediência de Adão e Eva à ordem expressa de Deus, trazendo morte como consequência. O modelo aloca estes eventos na proto-história judaica.

Para alguns, contudo, uma desvantagem do modelo seria o apelo à liderança federal de Adão para conceber o chamado de Deus à comunhão consigo como destinado a todos os seres humanos e, igualmente, ver a desobediência do Adão como tendo impacto sobre a totalidade da espécie humana. A noção da uma liderança adâmica é claramente percebida através de textos como Romanos 5.12,17 e 1Coríntios 15.22, embora Romanos 5.12 deixe claro que a morte espiritual veio a todos os homens porque eles efetivamente pecaram. Cada pessoa é responsável por seu próprio pecado. O modelo não é, portanto, consistente com uma noção estritamente agostiniana da herança da natureza pecaminosa, mas de todo modo muitos comentaristas não encontram esta noção nas Escrituras, as quais enfatizam que todos pecaram e carecem da glória de Deus (Rm 3.23) enraizando tal fato no pecado de Adão (1Co 15.22) mas ressaltando a responsabilidade pessoal que cada um tem por seu próprio pecado (Dt 24.16; Jr 31.30; Rm 5.12).

O modelo Homo divinus não responderá todas as questões teológicas que alguém possa querer levantar, assim como o modelo da "releitura". Por exemplo, qual será o destino eterno de todos aqueles que viveram antes de Adão e Eva? A resposta é que não fazemos ideia. Mas podemos estar seguros com Abraão: "Não faria justiça o Juiz de toda a terra?" (Gn 18.25). De fato, nós não fomos convocados para julgar a Terra e podemos deixar tal prerrogativa nas mãos daquele que "julga com justiça" (1Pe. 2.23). A questão sobre aqueles que viveram antes de Adão e Eva não é diferente de outras perguntas que podemos fazer. Por exemplo, qual o destino eterno daqueles que viviam na Austrália no tempo em que a Lei estava sendo entregue a Moisés no Sinai? Novamente, não sabemos e, novamente: "Não faria justiça o Juiz de toda a terra?". Cristãos que perdem tempo especulando sobre tais coisas aparentam ser os juízes do destino do mundo, esquecendo que tal prerrogativa pertence somente a Deus.

Conclusões

Os dois modelos apresentados aqui podem parecer trabalhos em andamento. Ambos são fortemente subdeterminados pelos dados, o que quer dizer que, de todo modo, não há dados suficientes para decidir entre um e outro. Ambos os modelos podem ser falsos e um terceiro tipo pode estar esperando para fazer um trabalho muito melhor. Esperemos que assim seja! Mas no momento as várias ideias que têm sido sugeridas representam, aparentemente, versões destes dois modelos.

É provável que novos dados possam surgir e tornar um destes modelos , ou mesmo os dois, insustentável? Isto não é impossível, contudo se isto ocorrer, será da ciência que os novos dados virão, provavelmente. Por exemplo, o modelo "Para Fora da África" para as origens humanas poderia ser falsificado por novas descobertas, por mais improvável que isto possa parecer atualmente. Igualmente, não é impossível que novos dados sobre as origens do monoteísmo possam vir a lume e influenciar a construção dos modelos.

Dado que ambos os modelos aqui mostrados sugerem que a evolução humana per se é irrelevante para o entendimento teológico da humanidade feita à imagem de Deus, é provável que a preferência por um ou outro modelo será baseada em um prévio entendimento das afirmações de dados textos bíblicos. Também parece claro que a adoção de um modelo em relação ao outro pode ter impacto em outras perspectivas teológicas. Por exemplo, se a narrativa da Queda em Gênesis é a história da alienação gradual de Deus que ocorreu durante alguma não especificada era primeva do surgimento do Homo sapiens, como no modelo da "Releitura", então a interpretação da Queda pode começar a girar à volta do comportamento antissocial do homem, ou da emergência do conflito, ou mesmo de comportamentos necessários apenas à sobrevivência humana básica. Mas, importantes como estas coisas são, eu sugeriria que elas não nos trazem ao coração da doutrina bíblica da queda, a qual não é sobre sociobiologia, mas sobre o relacionamento com Deus, que foi quebrado devido ao orgulho humano, rebelião e pecado contra o Senhor - com profundas consequências para o status espiritual da humanidade, e para o trato humano com a Terra. A Queda é sobre responsabilidade moral e pecado, não sobre mau comportamento, e o pecado envolve alienação de Deus. Um relacionamento não pode ser quebrado pelo pecado sem existir, em primeiro lugar.

Tais reflexões são um lembrete de que modelos nunca devem ser confundidos com dados, ou teríamos um caso do "rabo abanando o cão". Algumas vezes, na ciência, temos que sustentar firmemente grupos distintos de dados muito confiáveis, sem a mínima ideia de como os dois grupos podem vir a construir uma história coerente. Ao relacionar a antropologia com o ensino bíblico estamos em melhor situação, já que os modelos expostos, de certo modo, vão à direção de tornar os dois conjuntos de dados coerentes entre si. Mas ninguém é ingênuo ao ponto de pensar que tais modelos são completamente satisfatórios. Por outro lado, ou um ou outro pode dar alguns insights úteis ao longo do caminho, e estimular a construção de modelos melhores no futuro.

*O fragmento entre colchetes foi acrescentado para melhor compreensão do texto (nota do tradutor).
**A chamada de nota não foi encontrada no original (idem).


Doutor Denis Alexander é diretor do Faraday Institute for Science and Religion, St. Edmund’s College, Cambridge, Reino Unido (saiba mais em http://www.faraday-institute.org).


Notas

1.       McDougall, I. et al Nature 433: 733-736 2005.
2.      White, T.D. et al Nature 423: 742-747, 2003; Clark, J.D. et al Nature 423: 747-752, 2003.
3.      Um útil relato sobre a saída dos seres humanos da África pode ser encontrado em: Jones, D. ‘Going Global’, New Scientist, 27/10/2007, p.36-41.
4.      Fagundes, N. J. et al., ‘Statistical evaluation of alternative models of human evolution’, Proceedings of the National Academy of Sciences USA, 104:17614-17619, 2007. O ‘tamanho efetivo da população’ é definido como o número de indivíduos em uma população que contribui via reprodução para a próxima geração.
5.      Linz, B. et al., ‘An African origin for the intimate association between humans and Helicobacter pylori’, Nature 445-: 915-918, 2007.
6.      Isto é mais bem ilustrado pelo modo como diferentes traduções introduzem ‘Adão’ como um nome pessoal dentro do texto: a Septuaginta (tradução para o grego do Antigo Testamento) em 2.16; AV em 2.19, RV e RSV em 3.17; TEV em 3.20 e NEB em 3.21).
7.      Os dois modelos equiparam-se aos modelos “B” e “C”, descritos em maiores detalhes em: Denis Alexander, Creation or Evolution – Do We Have to Choose? Oxford: Monarch, 2008.
8.     O modelo “B” tem sido bem apresentado por Day, A. J. ‘Adam, anthropology and the Genesis record - taking Genesis seriously in the light of contemporary science’. Science & Christian Belief, 10: 115-43, 1998.
9.      Justin L. Barrett, Why Would Anyone Believe in God? Altamira Press, 2004.
10.  O Gênesis não usa o termo “queda” e pode ser mais exato intitular o relato de Gênesis 3 como “Como começou o pecado”, mas, desde que a linguagem da “Queda” tem se consolidado na literatura teológica, será usada aqui como abreviação.
11.   Até onde sei, o termo Homo divinus foi utilizado deste modo pela primeira vez por John Stott no Church of England Newspaper, de 17/07/1968, então em Stott, J.R.W. (1972) Understanding the Bible, London: Scripture Union. p. 63. A ideia foi também discutida de modo proveitoso em várias publicações por  R. J. Berry, o qual provê uma boa discussão das questões levantadas nesta seção em: Berry, R.J. and Jeeves, M. ‘The nature of human nature’, Science & Christian Belief 20: 3-47, 2008. Veja também Berry, R. J. Creation and Evolution, not Creation or Evolution, Faraday Paper, n° 12, 2007 (download gratis em www.faraday-institute.org).
12.  Algumas versões deste modelo buscam incorporar o ensino sobre a imagem de Deus ao modelo de modo mais claro do que o exposto aqui.


Original aqui. Tradução: Robson Barbosa da Silva

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