Páginas

sábado, 31 de maio de 2014

Como foi interpretado o relato da criação de Gênesis antes de Darwin?




Em poucas palavras

Dada a completa diferença entre as noções de evolução e criação em seis dias, muitas pessoas pensam que a teoria de Darwin abalou os fundamentos da fé cristã. Na verdade, a interpretação de seis dias literais de Gênesis 1 e 2 não foi a única perspectiva sustentada por cristãos antes do advento da ciência moderna. Santo Agostinho (354-430), João Calvino (1509-1564), John Wesley (1703-1791) e outros defenderam a ideia da acomodação. Sob tal ponto de vista, Gênesis 1-2 foi escrito em uma forma alegórica simples, para facilitar sua compreensão por parte do povo daquele tempo[a]. De fato, Agostinho sugeriu que os seis dias de Gênesis 1 descrevem um único dia de criação. Santo Tomás de Aquino (1225-1274) argumentava que Deus não criara as coisas em seu estado final, mas criou-as com potencial para desenvolver-se como ele projetou. As visões destes e de outros líderes cristãos são consistentes com Deus criando vida por meio da evolução.



Em detalhe

Introdução

Muitas pessoas supõem que a teoria de Darwin deve ter abalado as fundações da fé cristã por causa da completa diferença entre as ideias de evolução e de uma criação em seis dias. De fato, a interpretação de seis dias literais de Gênesis 1-2 não foi a única perspectiva adotada por pensadores cristãos antes da publicação de A Origem das Espécies, em 1859. Os trabalhos de muitos antigos teólogos e filósofos cristãos revelam uma interpretação de Gênesis compatível com a teoria de Darwin.

Pensamento cristão primitivo

Orígenes, um filósofo e teólogo do terceiro século, oriundo de Alexandria, no Egito—um dos centros intelectuais no mundo antigo—provê um exemplo do pensamento cristão primitivo acerca da criação.

Mais conhecido por suas obras Sobre os Primeiros Princípios e Contra Celso, Orígenes apresentou as principais doutrinas do cristianismo e defendeu-as contra as acusações dos pagãos. Orígenes opôs-se à ideia de que a história da criação deveria ser interpretada como um relato literal e histórico de como Deus criou o mundo. Existiram outras vozes antes de Orígenes as quais advogaram interpretações mais simbólicas da história da criação. A visão de Orígenes também influenciou outros pensadores cristãos posteriores da igreja antiga[1].

Santo Agostinho de Hipona, um bispo na África do Norte durante o quinto século, foi outra figura central do período. Embora mais conhecido por sua obra As Confissões, Agostinho foi o autor de dúzias de outros trabalhos, vários dos quais focalizam em Gênesis 1-2[2]. Em O Significado Literal de Gênesis, Agostinho argumenta que os dois primeiros capítulos de Gênesis foram escritos para adaptar-se ao entendimento do povo daquele tempo[3].

A fim de comunicar-se de uma maneira na qual todo povo pudesse entender, a história da criação foi dita em uma forma alegórica mais simples. Agostinho também acreditava que Deus criara o mundo com capacidade de se desenvolver, um ponto de vista que se harmoniza com a evolução biológica[4].

Pensamento cristão posterior

Existem muitas outras interpretações não literais de Gênesis 1 e 2 na história posterior. Santo Tomás de Aquino, um bem conhecido filósofo e teólogo do século 13, estava particularmente interessado na intersecção entre ciência religião e foi fortemente influenciado por Agostinho. Aquino não receava a possível contradição entre a história da criação de Gênesis e as descobertas científicas.

Na Suma Teológica, ele responde à questão se todos seis dias da criação são realmente uma descrição de um único dia, uma teoria sugerida por Agostinho. Aquino argumenta que Deus criou todas as coisas para ter potencial:

Sobre o dia no qual Deus criou o céu e a Terra. Ele criou também todas as plantas do campo, não em ato, realmente, mas "antes que surgissem na terra", isto é, em potencia... Todas as coisas não foram distintas e adornadas simultaneamente, não devido à impotência de Deus, como que necessitando de tempo para operar, mas sim para salvar a ordem no estabelecimento do mundo[5].

A perspectiva da criação de Agostinho pode ser vista mesmo tão tardiamente quanto no século 18—justamente antes de Darwin ter publicado seu A Origem das Espécies—nas obras de John Wesley. Ministro anglicano e líder no movimento metodista, Wesley, como Agostinho, pensava que as escrituras foram escritas em termos adequados para sua audiência. Ele escreve:

O autor inspirado nesta história [Gênesis]... [escreveu] para os primeiros judeus e, planejando sua narrativa para o estado incipiente da igreja, descreve coisas por suas aparências externas, e leva-nos, por descobertas adicionais da luz divina, a ser guiados no entendimento dos mistérios escondidos sob estas[6].

Wesley também afirma que as escrituras “foram escritas não para satisfazer nossa curiosidade [acerca de detalhes], mas para levar-nos a Deus”[7].

No século 19, o Seminário Teológico de Princeton era conhecido por sua forte defesa do calvinismo conservador e da absoluta autoridade das escrituras. Talvez o mais famoso teólogo de Princeton deste período, B. B. Warfield aceitava a evolução como um relato apropriado acerca das origens humanas. Ele acreditava que a voz de Deus nas escrituras e as conclusões do sólido trabalho científico não estavam em desacordo. Como o historiador Mark Noll expõe "B. B. Warfield, o mais capaz defensor moderno da doutrina teologicamente conservadora da inerrância bíblica, era também um evolucionista"[8].

Conclusão

A história do pensamento cristão não tem sido consistentemente dominada por proponentes de uma interpretação literal de Gênesis. As descobertas da ciência moderna não deveriam ser vistas como que instigando o abandono da confiança nas escrituras nem como contraditórias às escrituras, mas como marcos em direção a uma compreensão adequada do sentido das escrituras.

Agostinho dá este conselho:

Em assuntos que são tão obscuros e muito além de nossa visão, podemos encontrar na sagrada escritura passagens as quais podem ser interpretadas de muitas formas diferentes sem prejuízo à fé que temos recebido. Em semelhantes casos, não devemos nos precipitar e nos posicionarmos tão firmemente de um lado que, se novo progresso na busca da verdade solapa esta posição, também caiamos com ela. Isso seria batalhar não pelo ensino das escrituras sagradas, mas pelo nosso próprio ponto de vista, desejando que seu ensino esteja em conformidade com o nosso, ao passo que devemos desejar que nossa perspectiva estivesse de acordo com o ensino das escrituras sagradas[9].

*De fato, o autor confunde uma apresentação alegórica com uma acomodação. Não são a mesma coisa, pois "acomodação" seria o uso de formas conhecidas do leitor para veicular uma determinada ideia. No caso e Gênesis, teríamos o uso de uma cosmologia antiga para comunicar a noção de um Deus que cria e sustenta, por exemplo (nota do tradutor).


Leituras adicionais

Artigos

Lucas, Ernest. “Interpreting Genesis in the 21st Century (PDF).” Faraday Papers.

Young, Davis A. "The Contemporary Relevance of Augustine's View of Creation." Perspectives on Science and Christian Faith.

Livros

Collins, Francis S. The Language of God: A Scientist Presents Evidence for Belief. New York: Free Press, 2006.

Falk, Darrel R. “Science and Religion: Trying to Live in Two Worlds at Once.” In Coming to Peace with Science: Bridging the Worlds between Faith and Biology, 19-38. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2004.

McGrath, Alister E. A Fine-Tuned Universe: The Quest for God in Science and Theology. Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 2009.

Notas
1.      Peter C. Bouteneff, Beginnings: Ancient Christian Readings of the Biblical Creation Narratives (Grand Rapids, MI: Baker, 2008).
2.      Gillian Clark, Augustine: The Confessions [Agostinho: As Confissões] (New York: Cambridge University Press, 1993).
3.      Bispo de Hipona Santo Agostinho, The Literal Meaning of Genesis, Ancient Christian Writers, n°. 41 (New York: Newman Press, 1982).
4.      Para uma discussão adicional da perspectiva de Agostinho sobre a criação, ver o capítulo 6 de The Language of God: A Scientist Presents Evidence for Belief (New York: Free Press, 2006) [publicado no Brasil como A Linguagem de Deus: um cientista apresenta evidências de que ele existe, por Editora Gente], de Francis Collins, bem como os capítulos 8 e 15 do A Fine-Tuned Universe: The Quest for God in Science and Theology (Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 2009), de Alister McGrath.
5.      Santo Tomás de Aquino, “Question 74: All the Seven Days in Common,” em The Summa Theologica of St. Thomas Aquinas, 2nd ed., trans. Fathers of the English Dominican Province (London: Burns Oates and Washbourne, 1920). Disponível online em “Summa Theologica,” New Advent (acessado em 21/10/2011).
6.      John Wesley, Wesley’s Notes on the Bible (Grand Rapids, MI: Francis Asbury Press, 1987), 22, citado em Falk, Coming to Peace, 35. Também disponível online em John Wesley, “John Wesley’s Notes on the Bible,” Wesley Center Online (acessado em 21/10/2011).
7.      John Wesley, A Survey of the Wisdom of God in the Creation: or, A Compendium of Natural Philosophy, 3rd ed. (London: J. Fry, 1777), 2:463, citado em Falk, Coming to Peace, 35.
8.      Mark A. Noll and David N. Livingston, eds., B. B. Warfield: Evolution, Science, and Scripture (Grand Rapids: Baker, 2000), 14.
9.      Agostinho, The Literal Meaning of Genesis, 41.

Original em BioLogos. Tradução: Robson Barbosa da Silva



[a]De fato, o autor confunde uma apresentação alegórica com uma acomodação. Não são a mesma coisa, pois "acomodação" seria o uso de formas conhecidas do leitor para veicular uma determinada ideia. No caso e Gênesis, teríamos o uso de uma cosmologia antiga para comunicar a noção de um Deus que cria e sustenta, por exemplo (nota do tradutor).

Nenhum comentário:

Postar um comentário